sábado, julho 19, 2008

O FESTIVAL DE CANNES por WASHINGTON OLIVETTO

Tempos modernos

O Festival de Publicidade de Cannes completa 55 anos esta semana batendo recordes de inscrições de peças e de delegados, com enorme popularidade entre os profissionais de agências, veículos e anunciantes, mas sem o prestígio e o glamour que já possuiu.

O festival — criado originalmente em Veneza (daí vêm os leões como prêmios), em 1953, pela família Rothschild com a intenção de melhorar a qualidade dos filmes publicitários exibidos nos cinemas (eles eram donos da maioria dos cinemas da Europa) — viveu seus momentos de glória em Cannes, particularmente de 1970 a 1989.

Em 1989, os Rothschilds quebraram, o festival foi vendido, passou a ser administrado com interesses comerciais e fins lucrativos, e a vaca, digo, o leão do prestígio e do glamour foi para o brejo.

Entre 1970 e 1989, o festival ainda se chamava Festival do Cinema Publicitário de Cannes, os prêmios eram pouquíssimos (no máximo 1 Grand Prix, 18 Leões de Ouro, 36 de Prata e 36 de Bronze), e os jurados eram sempre os mais consagrados — e menos necessitados de prêmios — publicitários do mundo.
Naquela época, não existiam as peças fantasmas, conchavos eram considerados constrangedores, e a seriedade e a elegância imperavam.

Obviamente, aconteciam as exceções e os erros, mas seus autores eram logo descobertos e silenciosamente banidos daquela comunidade fechada.
Existiam duas festas oficiais do festival, a de abertura e a de encerramento, ambas no Palm Beach Casino, e o black-tie para os homens e o longo para as mulheres eram obrigatórios.

Os shows das festas eram feitos por artistas consagrados de diferentes países (nosso Jorge Ben Jor chegou a se apresentar numa delas), e as queimas de fogos nos encerramentos eram consideradas as maiores e mais bonitas dos verões europeus.

A premiação acontecia no sábado (sétimo dia do festival), no antigo Palais, hoje transformado em museu, e sem o traje de gala ninguém podia entrar para receber prêmio.

Os resultados normalmente eram justos e lógicos, privilegiando as grandes idéias bem produzidas ou, no mínimo, as grandes idéias. As eventuais vaias e manifestações de desacordo com o resultado, quando ocorriam, nunca eram dirigidas aos autores dos trabalhos na hora da premiação. Aconteciam única e exclusivamente durante a projeção dos filmes.

Havia também durante a semana do festival algumas poucas festas fechadas, com número reduzido de convidados, e, entre elas, se destacava a do gentleman James Garrett, dono de uma produtora de comerciais inglesa, que empregava, entre outros, os hoje sirs Ridley Scott e Alan Parker.

O jantar em homenagem ao júri era no Hotel Eden-Roc, em Cap d’Antibes, ou no La Ferme de Mougins, em Mougins, e, além dos homenageados, também eram convidadas para o jantar as grandes estrelas da publicidade mundial.

O diretor-geral do festival, representante da SAWA (Screen Advertising World Association), era o inglês Simon Dalgleish, que falava fluentemente seis idiomas.
Simon, um homossexual plenamente assumido, beijava com simpatia e desenvoltura o rosto dos grandes ganhadores e presenteava suas esposas no dia da chegada e no da partida com objetos de extremo bom gosto.

Os sem-esposa e mais espertos vez por outra acabavam namorando alguma das inglesinhas da organização do festival, coisa que não era incentivada nem proibida, mas sempre feita com absoluta discrição.

Simon Dalgleish se hospedava no Carlton Hotel e todas as noites convidava algumas das estrelas do festival para uma última rodada de champanhe no Petit Bar, no Carlton, que até hoje é comandado pelo simpático e competente Patrick.

As estrelas do festival aproveitavam as noites para jantar nos bons lugares da Côte d’Azur, particularmente no Colombe d’Or, em Saint-Paul de Vence, no Gaston Gastonette, em Cannes, no Moulin de Mougins, em Mougins, no Tetou, em Golfe-Juan, e no Bacon, em Cap d’Antibes. Mas durante o dia não se via ninguém na praia ou passeando pela Rue d’Antibes. Estrelas ou não, todos os participantes do festival ficavam no Palais durante 8 horas por dia.

O festival era a única maneira de se conhecer tudo de bom que tinha sido feito na publicidade mundial.

E também a única maneira de um bom profissional local se transformar num profissional mundialmente conhecido.

Fora isso, o festival também permitia algumas descargas das tensões do dia-a-dia. E doces ilusões de lazer.

Tanto que alguns dos participantes chegavam todas as manhãs ao Palais com cara de ressaca quase direto do bar do Hotel Martinez, onde particularmente os nórdicos tomavam porres homéricos. Era comum encontrar suecos, dinamarqueses, noruegueses — e holandeses também — dormindo embaixo do piano do bar do Martinez. O bar do Martinez tinha um pianista fixo das 7 da noite às 3 da manhã.

De 1990 para cá, o festival mudou. Cresceu o tamanho, encolheu o prestígio, desapareceu o glamour. Transformou-se numa feirona, uma espécie de UD ou FENIT de todas as áreas do negócio da comunicação.

A “juvenilização” floresceu, e boa parte das estrelas se retirou para o Hotel du Cap, em Cap d’Antibes, de onde acompanham o festival a distância, com eventuais e raras visitas a Cannes. Outros, mais radicais, se retiraram definitivamente do festival. No máximo, fingem-se interessados quando seus comandados relatam suas impressões ao voltar do evento.

A verdade é que existe uma lógica nisso tudo: sem entrar no mérito da questão dos enormes interesses comerciais que movem aquela máquina, dois únicos fatos já explicam totalmente o ocorrido.

Hoje, ninguém mais precisa daquela semana em Cannes para conhecer tudo o que foi feito de bom na publicidade mundial. Essa informação é recebida cotidiana e instantaneamente por todos em qualquer parte do mundo. Além disso, hoje ninguém mais precisa de um grande trabalho premiado em Cannes para ficar conhecido. Vivemos um momento pós-fantasmas e pós-YouTube, no qual muitos ficam famosos mesmo antes de terem qualquer grande trabalho veiculado.

Assim, neste curioso mundo de muitas celebridades e poucas “cerebridades”, o tradicional Festival do Cinema Publicitário de Cannes se transformou hoje em dia — para a pretensiosa e nem sempre conformada elite intelectual do negócio da comunicação — numa espécie de Itabira da publicidade mundial: um retrato pendurado na parede.

Dos tempos de prestígio e glamour, apenas duas coisas sobraram, e, mesmo assim, de um jeito diferente: o Patrick, que continua comandando o Petit Bar, no Carlton, apesar de estar decepcionado com a freqüência atual e com a ausência do Simon, e os porres no bar do Martinez, agora turbinados por uma decoração mais moderna e música eletrônica.

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Obrigado pela dica, Marcelo.